David Brent vs Michael Scott
by the way, she said ‘no’Essa é a última frase de Tim, no The Office original, que poderia ser chamado também de Os Últimos Dias de David Brent (o boss da versão original).
A grande diferença entre o americano e o inglês é que ao longo das temporadas, o americano é minimamente uplifting. No americano existe uma redenção para o boss, que devo dizer, é genial --é o episódio Business School, o heartbreaking ápice das primeiras três temporadas, perfeito no tom, no material, no humor, no diálogo, na filmagem, no contexto, no subtexto, na atuação, na direção, na execução.
Depois dos seis primeiros episódios da versão americana (primeira temporada) eles alçaram vôo solo. Seus personagens que são espelhos da versão original começaram a tomar vida própria. Cada ator dá seu próprio spin ao personagem.
Na versão da BBC que teve apenas 12 episódios, sendo que o americano teve 50 até agora, muita coisa teve que ser apenas insinuada, enquanto que o americano é na lata. Por exemplo, o romance entre a recepcionista e o vendedor, eles só se tocam quatro vezes em todos os doze episódios (incluindo os dois tapinhas no ombro dele). Enquanto que o americano o flerte entre os dois é constante (na versão francesa eles chegam a se amassar embaixo da mesa da recepção).
Deixa eu abrir um parênteses aqui, a versão inglesa é muito menos próxima de uma novela como é a americana. No da BBC só há dois arcos de história: a demissão de David Brent e o relacionamento invisível dos dois funcionários. O americano vai abrindo arcos novos de relacionamentos e conflitos que provavelmente não terão o desfecho cruel que o original provocou.
A versão da BBC é quase que a desconstrução de dois personagens, um medíocre posto na posição de superior, e a de um cara de talento preso pela própria vida. Os 12 episódios são duas temporadas, e há um toque genial no finale da primeira: o cara de talento que queria sair daquela vida aceita seu destino de funcionário e começa a falar como o medíocre na posição de superior.
As diferenças entre Tim e Jim (BBC e NBC), assustam quando você ressalta os contrastes. Tim é tão inteligente quanto Jim, os dois tem o mesmo humor, o mesmo appeal, mas destinos opostos. É difícil dizer qual dos dois representa melhor a vida real. Provavelmente o da BBC. Tim é um pobre diabo, não é respeitado, não tem futuro, e é perdido no que quer, e que quando tenta corrigir o próprio destino, quebra a cara. A frase lá em cima, ‘by the way, she said no’, é exatamente isso, ele presta seu último depoimento para a câmera dizendo que ‘precisa-se aceitar certos fatos da vida’, nessa frase ele arranca o microfone fora da lapela e vai em direção da recepcionista que vai se mudar para os States com o noivo. É lacrimejante, e é uma cena só com o silêncio e um beijo que não acontece.
É amargo e é real. O americano é amargo, mas deixa um gosto doce na garganta.
E eu diria que essa diferença não é ideológica, é meio que prática. Porque de um lado temos uma emissora pública cuja preocupação é o conteúdo e a coerência. Do outro uma rede de TV americana que não quer que seus espectadores cortem os pulsos no intervalo comercial.
Um dos feitos de Rick Gervais (que interpreta o boss) & Stephen Merchant é trazer à tona a idéia do ‘patético’, no sentido shakespeariano da palavra, no sentido trágico da palavra:
Segundo Merriam-Webster (os dicionários locais online são uma bosta), Patético:
1: Capacidade de gerar compaixão e pena
2: Marcado pela mágoa e melancolia: tristeza
3: Inferior, inadequado
São exatamente os três sentimentos que David Brent e Michael Scott geram. A grande pergunta que o Personagem Patético levanta é ‘ele vai entender um dia que ele é patético?’ Podemos dizer que Dom Quixote é patético, visto de fora, porque por dentro ele é um nobre cavalheiro que se sacrifica pelos seus valores, e que são bons valores.
O boss do The Office é um Dom Quixote que teve seus valores construídos por seriados da década de 80 e filmes questionáveis. Ele é patético por dentro e por fora, e acredita piamente estar fazendo sempre fazendo o certo, pregando sua justiça pelo mundo; e por fim, não entendendo porque nunca é recompensado pelos seus sacrifícios, o tornando numa pessoa insuportavelmente carente de atenção e reconhecimento.
Além de patético, o boss é incompetente. Não é capaz de executar uma tarefa com qualquer seriedade. Além de patético e incompetente, ele é covarde. Porque foge das situações que cria, mentindo o tempo inteiro. Somando, ele é patético, incompetente, covarde e mentiroso.
A tangente que separa David Brent e Michael Scott é que até o caráter de David Brent é questionável. Ele não é apenas um Dom Quixote ao quadrado, ele nem mesmo consegue ser coerente com os próprios valores. O que o torna ainda por cima em um hipócrita.
Patético, incompetente, covarde, mentiroso, hipócrita, para não dizer ainda, o pior de todos os adjetivos: David Brent é insensível. Michael Scott é quase. Metade daqueles momentos constrangedores do The Office vêm da insensibilidade do boss. Lembra da cena da demissão ‘de brincadeira’? Aquilo é emblemático, uma cena presente em todas as encarnações do The Office.
E apesar de tantos adjetivos ruins, essa figura é familiar. Alguém conhece alguém que é patético, incompetente, mentiroso, covarde, hipócrita, insensível? Esse que é o pior, sim. Todos nós já tivemos nossos ‘chefes’. Cruzamos com michael scotts e david brents o tempo inteiro. Temos até um pouco deles em nós mesmos.
The Office é uma ode ao patético. Uma carreira na indústria de papel no século digital é no mínimo irônico, e é nesse barco que eles estão todos juntos. O original nem chega a tocar nesse assunto, apesar de ter tido a idéia. Existe uma sensação refrescante em estar com várias pessoas no mesmo barco, e de repente o barco passa a ter significado. As paredes do escritório passam a ter uma vida, as estruturas, as mesas, as tranqueiras têm uma ligação emocional, geram uma identidade, mesmo que cinza. A versão da BBC não chegou a ter isso.
Os americanos usam muito o termo ‘família disfuncional’, eu queria saber que família no mundo é ‘funcional’. Em todo o caso, as relações de um ambiente de trabalho que duram anos, décadas é de uma família disfuncional. Daquelas famílias que adolescentes vivem trancados no quarto, os pais fora de casa em camas separadas. Ninguém se fala, se fala, são palavras vazias, amenidades. Ninguém quer saber da vida do outro. No entanto, depois de tanto convívio forçado acaba-se se sabendo tudo. E querendo ou não, cada um passa a se importar com o outro. O da BBC também não chegou a ter isso.
E temos cobrindo tudo isso uma câmera-personagem. As pessoas fazem qualquer coisa na frente de uma lente. É difícil dizer se David Brent teria sido demitido se não houvesse uma equipe de filmagem lá. A câmera do The Office é um personagem, e que vou te dizer, de uma sensibilidade impressionante; a câmera é o único personagem que compreende a dor ou a felicidade de cada um. Lembre-se que em The Office os atores interagem com a câmera e ela responde a sua maneira.
Resumindo, The Office é um The Osbournes com vidas ordinárias, desconhecidas, num trabalho tedioso, redundante, monótono e no entanto vidas tão interessantes quanto a de Ozzy. E isso faz as pessoas se sentirem bem; dizem que The Office é existencial, não sei o que querem dizer com isso.