Tuesday, March 27, 2007

Sem Ressentimentos

Que vida miserável tinha Frederico. Toda briga doméstica diária terminava com um ‘você é um bosta, Frederico, você é um perdedor’. Seu chefe arrogante promovia qualquer um menos ele. Frederico recebia mais comunicados da Serasa que promoção da Veja. E ninguém sentia sua falta, seu celular não toca, seu email só tinha spam, nem sua mãe lembra de seu aniversário. Frederico queria morrer.

Bêbado, ele vai para ponte despencar. Ele deixa cair a garrafa vazia e ouve os estilhaços quebrando longe. ‘É isso’. Foram suas últimas palavras. Ele pula.

No meio da queda surge o anjo de harpa e aréola ‘Opa, com licença?`

Parado no meio do ar, Frederico pergunta se já morreu. ‘Então, vim lhe dar a oportunidade de se arrepender de jogar fora sua vida’ respondeu o anjo.

Frederico olha para o chão, para os cacos. ‘Quero que o mundo se exploda!’ ele berra jogando os braços ‘me deixa cair!’.

‘Olha, Frederico, até podia deixar você se espatifar no chão, mas atualmente a fiscalização deu uma apertada. Se ficarem sabendo que te passei o sinal verde, me encrenca... entende minha situação?’ Diz o anjo sem cerimônias.

‘O Céu tem desses problemas também?’

‘É, mas tem sempre um jeito. Só que agora teve a troca do ministro das causas perdidas, e eles querem mostrar serviço. Então... qual tour você prefere pra se redimir? A gente tá dispondo pros fiéis as seguintes opções...’

‘Eu vou ter que pagar alguma coisa?’ intervém Frederico.

O anjo pega um papel e uma calculadora. ‘Olha, sua dívida transcendental já anda meio no vermelho, se você se matar, e o Senhor não gosta nada disso... cá entre nós, ele odeia que falem que mal da vida que ele dá. E quando tem devolução, sai de perto...’ O anjo acende um cigarro com a espada de fogo.

‘Eu já tô endividado na outra vida também!?’

‘Pois é Seu Frederico, e pela contabilidade lá em cima, com o senhor se matando, nem mesmo a eternidade no purgatório vai resolver.’

‘Então tá, uma dívida a menos... me põe no chão que eu volto pra casa. Rezo mais, vou ser um ser humano melhor. Feito?’

‘Por mim senhor Frederico, até podia, sem problema nenhum, mas infelizmente sou obrigado a fazer a redenção padrão, e isso vai te custar bem além da vinda de um anjo e parar o tempo' o anjo calcula um pouco mais 'o que te deixa com o crédito cármico de meia eternidade... mas o senhor pode negociar depois. Nós estamos com uma promoção na Salvação Executiva, que é... ’

Frederico corta antes dele começar ‘o que acontece se eu não pagar?’

‘Criamos o inferno para isso Senhor Frederico...’

‘Como é lá? Tem dívida lá também?’

‘O inferno é só uma fila na porta que não anda. Olha seu Frederico, tenho ainda dois suicídios agendados pra hoje, queria muito poder conversar mais... posso te dar um descontaço no tour "Se eu não existisse", vai sair quase de graça.'

‘Tá bom, qualquer coisa’ diz Frederico ao se dar conta de mais dívidas.

...

O bêbado Frederico e o Anjo burocrata vão andando pela cidade alternativa onde Frederico mas não existiu. Frederico já nota as diferenças, como a antiga praça que era abandonada e lúgubre agora iluminada e cheia de gente ‘Ei, o cinema! O Cinema Coliseu tá de pé!’.

‘Você se lembra da última vez que o viu, Frederico?’ Pergunta o anjo já sabendo da resposta.

‘Claro, fui eu que negociei ele pra virar um estacionamento’

‘Um estacionamento vazio’ Lembra o anjo.

‘Pois é, sem o cinema isso aqui tudo ficou às moscas. Perdi toda a grana do meu avô... e eu achei que fosse fazer a mala’ Frederico olha pra o lado ‘Ei, aquele não é o Glodoaldo?’

Glodoaldo, seu velho amigo de bar, veste um terno ao sair de uma jabiraca oficial. Frederico vai falar com ele ‘Dualdo! Safado! Ainda não tá bêbado?! Que porra você tá fazendo de terno?’

Glodoaldo olha para o motorista capanga apontando para Frederico ‘você conhece?’

‘Pô Dualdo, sou eu, não reconhece?’

‘Vai atrapalhar outro vereador!’ Disse Glodoaldo saindo de perto dele.

‘Vereador...’ pensou alto Frederico. ‘Que que é isso, Anjo? Achei que você só fosse me mostrar como o mundo ficaria miserável sem mim.'

‘Pois é, não é à toa que essa é a redenção mais barata, é que normalmente não dá muito resultado’

‘Tá tem alguma coisa boa pra eu ver? Alguma coisa que me faça sentir melhor? Pra não me matar?! Não que me importasse muito'

'Coisa boa...hmmm, deixa eu ver' O anjo acessa o palm. 'Sua mulher agora mora em Nova Iorque, fez três plásticas e se casou com um arquiteto alemão, tem três filhos, parece muito feliz, olha só uma foto dela... quem diria seu Frederico, olha que belezura.'

‘Nossa, ela tá linda, e minha mãe?’

‘Bem, sua mãe tinha abandonado a carreira dela de atriz pra te criar, agora...’ Eles andam até um pôster antigo do cinema, ela aparece segurando uma rosa ‘ela sempre sonhou em estar aqui, incrível, não?’

'Ela nunca tinha me falado nada disso, sabia que ela era atriz... mas que merda, eu atrapalhei a vida de todo mundo? Misguso, meu cachorro onde tá ele? Se não fosse eu esse sarnento não sobreviveria, pelo menos isso!'

'Ele foi adotado pelos bombeiros e salvou cinco vidas em um soterramento, salvou sozinho um bebê de um incêndio no parque, é um herói nacional' O anjo aponta para a estátua de bronze do cachorro carregando um bebê no meio da praça.

Bêbado, Frederico começa a gargalhar 'sou um bosta mesmo. Pelo amor de Deus, cadê a ponte?'

O anjo entrega uma garrafa de pinga para Frederico 'Vamos ver... tem alguém que você odeie? Talvez ajude...'

'Meu chefe'

Num passe de mágica eles estão em frente ao chefe de Frederico. Numa sala escura com uma janela no alto, eles vêem o vulto se mexendo fazendo grunidos.

'Onde a gente tá? É ele? O que ele tá fazendo pelado no chão?'

'Bem, a gente está na clínica de repouso São Jeremias. E ele está... é... comendo os próprios... dejetos'

'Você tá falando sério... se eu não existisse... meu patrão estaria num hospício comendo a própria merda! Anjo, apaga a minha vida, devolve pra Deus, não quero nada, nada... só uma foto disso...'

'Como assim? você devolveria um carro usado como se fosse zero? Olha seu Frederico, o problema é que o senhor já gastou a sua vida, ela existiu, seu cachorro continua sarnento preso numa coleira, sua mulher te odeia, na verdade do jeito que vocês dois estavam indo, em três anos ela te mataria...'

'É sério isso? toda essa cena, todo esse trabalho pra daqui uns anos ser morto pela minha mulher!? ...como é que ela me mata?

'Vejamos... ela vai te esquartejar em cem pedaços e depois frita cada pedaço seu no óleo' O anjo mostra o jornal com a manchete dela sendo presa.

'Como pude dar uma vida tão horrível para ela... como? Não vou deixar! Como eu faço pra falar com o Demo, o Belzebú!'

Frederico escuta uma voz atrás dele 'hmm-hmm'. Ele se vira e depara com um homem de terno, chifres e um cartão de visita.

'Senhor Frederico, acredito que o senhor queira falar comigo' diz o sorridente Belzebú.

'A minha vida é uma merda e esse anjo aqui só tá fazendo pior. Quero ir pro outro lado! O que eu faço?'

Uma mesa surge do nada e o diabo pede para Frederico sentar, e tira um contrato da maleta. 'Isso aqui é a escritura da sua alma, assinando aqui você terá todos os benefícios do Outro Lado'

‘Tá, que benefícios?’

‘Iates, mulheres...’

‘Quero que você apague a minha vida. Nunca ter existido’

‘Primeira vez que escuto um desejo assim...’

‘Não quero ter nascido, olha em volta, até o ar é mais leve... olha o Coliseu, tá passando Toy Story 3, esse filme nem existia quando... eu existia! Minha mulher tem uma merda de vida, cinco pessoas morreram porque o Misguso ficô preso na minha garagem a vida inteira!’

‘Misguso?’

‘Meu cachorro. Olha... você pode apagar a minha vida ou não?’

‘Claro, fazemos tudo que Deus não faz. Esse é o nosso negócio’

‘Então, é isso. Onde assino’

O anjo cutuca Frederico. ‘Você vai fazer isso mesmo? Você vai pro inferno... você tem idéia no que tá se metendo?’

Frederico respira fundo, lê o contrato e assina.

‘Deseja se despedir de alguém?’ pergunta o demônio ‘porque assim que consumarmos seu contrato ninguém vai se lembrar de você, sua mãe, sua mulher, seu cachorro... nem aqui, nem na outra vida’

Olhando para o horizonte, Frederico deixa cair uma lágrima ‘não, tá tudo bem’ ele enxuga o rosto com a palma da mão ‘até que para um demônio você não é tão mau caráter’

‘Sabe aquela frase de que boas intenções o inferno está cheio? Não é muito longe da verdade’

Frederico olha a cidade pela última vez, e pela primeira vez em muito tempo ele se sente bem. ‘Vamos?’ ele pergunta.

O demônio aperta um botão no meio do ar e um elevador brota do chão. Dentro do elevador ele pergunta para o demo como é o inferno.

‘É só uma fila que não anda’ responde o Belzebú.

‘Porque que não anda?’

‘Preferimos fechar as portas’

...


Wednesday, March 21, 2007

Everything you know is everything

Saturday, March 10, 2007

Fragmentação Holística

Admito que a TV está melhor que o cinema, nos States, não aqui.

Talvez pelo fato que a TV se permita ser mais gratuita. A tela do cinema precisa de idéias grandes, algo que está em falta atualmente. Dizem que escrever para TV é menos frustrante que cinema.

Sempre xinguei a camera de Lost, porque camera na mão o tempo todo é como se dissesse: ‘foda-se a composição de cena’. Mas eles deram um salto quântico na narrativa de TV, finalmente sacando a narrativa-mor do cinema da década de 90: a fragmentação holística. De Lost Highway a Matrix, de Forest Gump a Mermento, sem contar o mais brega de todos: Corra Lola Corra. O único porém é que os seriados viram novelas, e assim como novelas, existem trocentos personagens e seus respectivos flashbacks. It's not a good fix, você se sente incompleto depois de um bom episódio, porque tudo é uma grande corrente de ganchos e finais ambíguos, e propositado para ser assim ainda por cima. Isso me dá saudades de Star Trek, que também vai virar novela na mão do JJ Abrahms que produz Lost.

Eu acredito que o desenvolvimento de personagens é o único modo de fazer, hoje, um filme, uma novela, um livro que soe novo e seja imprevisível. Vide Harry Potter. É um dos poucos lugares da cartola que ainda há coelhos. E esse é o território das novelas e dos novos seriados americanos. Se Kenny morreu, ele morreu, não volta, e isso se soma à realidade de todos os outros personagens até o ibope afundar. Coisa que não existia lá até agora a pouco, de Friends até CSI. Talvez seja a herança dos reality-shows, onde se Kenny morrer é catastrófico.

Lição aprendida, agora falta a TV aprender a arte da composição, e eles estão quase lá. Eles tinham, mas desaprenderam. Heroes é a tipica idéia básica que qualquer banana poderia inventar, mas esse é o charme da TV. Ela é gratuita. E ela, lá, aprendeu a escrever, a editar, e agora compor cenas. Funciona. O cinema é que não anda funcionando direito.

PS sobre Heroes: eles não apresentam nada genuinamente novo, até o logo de entrada é chupado da série Horizon da BBC; mas, e coloco um grande 'mas', eles revolucionaram a idéia de legenda, justamente eles, os americanos que tanto odeiam legenda Dois personagens da série só falam japonês, a posição da legendagem em inglês obedece a lógica dos balões dos comics, é simples, é lógico, é básico, é natural, é óbvio. Isso prova como ficamos cegos às obviedades, talvez pela acomodação, talvez pela nossa certeza do porquê das coisas serem do jeito que elas são.